30.1.03

Da simplicidade

Seu Juca, artes�o e mestre de cantaria recebeu condecora��o do presidente, mas n�o queria ir receber, n�o gosta de sair de Minas. H� uns anos foi a Veneza fazer curso de escultura. "L� � muito bonito, mas o meu servi�o � bem diferente". Carregou na mala o fub� e o queijo Minas, todo dia come mingau, n�o era l� na lonjura que n�o ia comer, mas n�o gostou muito da experi�ncia, "eu, com 78 anos, ir esbarrar em ilha, toda cercada de �gua..."
ox�moro



Minha irm�zinha, deve estar um friozinho a�, n�o? N�o me despedi e fico triste de pensar. Recebeu minha cartinha? Ontem escutei os Saltimbancos no r�dio, e copiei a letra a� embaixo. Lembrei de voc� cantando e mexendo os bra�os como Caetano (vamos comer Caetano...). Pensei em como a gente � liter�ria e fica assim, confirmando profecias. Nossa irm� vai bem, conversei com ela ontem ao telefone. Mais liter�ria que a gente, casmurra. E o B�? Ao Bernardo Caetano d� um abra�o forte, de encostar as barrigas e apertar as costelas. E pra voc�, todo o meu pote de doce de leite pastoso Vi�osa.

Me alimentaram
Me acariciaram
Me aliciaram
Me acostumaram

O meu mundo era o apartamento
Detefon, almofada e trato
Todo dia fil�-mignon
Ou mesmo um bom fil�... de gato
Me diziam em casa, n�o tome vento
Mas � duro ficar na sua
Quando � luz da lua
Tantos gatos pela rua
Toda a noite v�o cantando assim

N�s, gatos, j� nascemos pobres
Por�m, j� nascemos livress
Senhor, senhora ou senhorio
Felino, n�o reconhecer�s

De manh� eu voltei pra casa
Fui barrada na portaria
Sem fil� e sem almofada
Por causa da cantoria
Mas agora o meu dia-a-dia
� no meio da gataria
Pela rua virando lata
Eu sou mais eu, mais gata
Numa louca serenata
Que de noite sai cantando assim

N�s, gatos, j� nascemos pobres
Por�m, j� nascemos livress
Senhor, senhora ou senhorio
Felino, n�o reconhecer�s

24.1.03

Tava com vontade de comer p�o. Uma das particularidades desta terra � poder comprar p�o no boteco. Lembrei de ter lido h� um tempo atr�s um livro de prosa da Elizabeth Bishop, em que ela descreve o mesmo percurso que acabo de fazer. Pedi uma Coca-Cola, uns guardanapos e sentei pra escrever. Seu Lu�s vem me dizer que vai chover, como se n�o chovesse a cada meia hora eu pergunto, De novo? Vou em casa comer esse p�o com Nescaf� Tradi��o. Hora marcada no cabelereiro, tenho que acertar os intervalos das chuvas para ir e voltar de l�. O cabelereiro � uma dassas bichas divertid�ssimas quase caricatas, lindo de morrer.

(Isso me fez lembrar um personagem do Rubem Fonseca. Em Vastas emo��es e pensamentos imperfeitos ele descreve uma bicha de rolinhos e fazendo croch�, dono de um hotel em Diamantina. Parece personagem demais, mas ele existe mesmo, � um doce e ainda deve estar l�, atr�s do balc�o, crochetando descansos de copos e sorrindo � vida.)
C.

- Vou arrumar um namorado taxista.
-...? Por que n�o arruma um que tenha carro?
- � mais dif�cil. E n�o vem na hora que voc� liga.

21.1.03

Tava fazendo hora na biblioteca da faculdade enquanto esperava vagar um computador. Peguei A arte de amar, de Ov�dio. "Ov�dio escreveu para os leitores que viviam nas cidades do imp�rio, descreveu as experi�ncias amorosas da aristocracia romana e as formas de sedu��o amorosa corrente entre os libertos." Vamos ver no que isso deu, depois eu conto.

Peguei tamb�m Ana Cristina Cesar, s� por conta desse poema:

Tenho ci�mes desse cigarro que voc� fuma
T�o distraidamente.

T� ficando idiota.
Intercine

- O que voc� sente quando se deita ao meu lado?
- Solid�o.

20.1.03

Inimigos

� tradi��o em Ouro Preto o inimigo-secreto, na ceia de Natal.

B. ganhou um vidro de simancol.
Daqui de onde escrevo vejo o Morro da Forca. Eu n�o sei muito bem quantas pessoas morreram enforcadas ali, nem os porqu�s. Mas olhar d� remorso antigo.

14.1.03

podem ficar com a realidade
esse baixo astral
em que tudo entra pelo cano

eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano

P. Leminski
Realidade

T� procurando emprego. Acabei de me inscrever na Catho on line.
"�pios, �dens, analg�sicos/ n�o me toquem nessa dor/ ela � tudo o que me sobra/ sofrer vai ser a minha �ltima obra."
auto-engano

Todas as vezes que ponho meus p�s na porta come�a a chever. Ando enganando o tempo, e uns dez minutos antes da hora que terei que sair chego na porta e brinco com a chave. A chuva vem, eu espero e vou embora.

Hoje choveu 8 vezes em Ouro Preto, desde as 5 da manh�
Das expectativas

um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma il�ada

depois
a barra pesando
dava pra ser a� um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um elu�rd um ginsberg

por fim
acabamos o pequeno poeta de prov�ncia
que sempre fomos
por tr�s de tantas m�scaras
que o tempo tratou como a flores

Paulo Leminski
Correspond�ncia eletr�nica

Mari, anda! � pro Schmidt!

13.1.03

Quero fazer mestrado em Patrim�nio Hist�rico. Algu�m me orienta? Qualquer informa��o j� serve...
Mais pombos-correios
ou como uma hist�ria puxa a outra.


D. contou que quando estudava na Escola de Minas, naquela sala grande que j� foi chamada de Maracan� (substitu�da em nome por outra no ICEB), um pombo entrou por um quadradinho da janela. O professor parou a aula e o bedel se desculpou, 'Esse pombo � me, professor. Deve ser minha mulher pedindo pra eu levar carne pro almo�o.'

Retirou o rolinho da pata do animal, confirmou o que j� adivinhara e respondeu de volta: 'Pode deixar.' Amarrou no pombo, falou algo no ouvido (do pombo) e o soltou. Deixanto todos estupefatos.
Dos medos

O homem bateu na porta e as duas crian�as foram chamar o pai.
- O senhor n�o tem um r�dio que possa me dar?
O pai lembrou do aparelho abandonado no quarto dos fundos. Buscou o r�dio sob os olhares curiosos das crian�as e o deu ao homem. As crian�as quiseram lhe falar, seriamente:
- Pai, se ele pedir nossa televis�o o senhor vai dar tamb�m?

O homem devolveu o r�dio no dia seguinte, n�o funcionava.
domingo � soletrar a pregui�a de domingo...

Depois do almo�o sentamos na varanda com vista pra vista. Numa casa l� bem longe uma crian�a brincava de balan�o enquanto eu apertava meus olhos pra enxerg�-la. Impressionantemente n�s ouv�amos o barulho que o balan�o fazia. D. contou que um dia desses pousou ali naquela varanda um pombo-correio. Fiquei feliz por viver em um lugar onde se pode ver pombos-correio.

9.1.03

� ver�o?

Tava calor. Eu j� tinha tentado todos os jeitos, mas n�o consegui dormir naquele �nibus de cadeiras apertadas. R. roncava do meu lado, 'Muda de posi��o pra parar de roncar', 'Como?'. Me resignei. Fiquei acordada, pensei na vida, em Benedita. Nas aulas dentro de poucas horas. Pensei em Salvador, ainda vou morar l�... Vi ruas de Atenas, de Verona, de Porto Alegre. Lembrei de uma frase do lorde Byron: "Comer, beber, amar. O resto n�o vale um n�quel." - e isso me rendeu uma meia hora de devaneios. Tentei virar de lado, contar carneirinhos, ir ao banheiro. Cochilei.

Ent�o fui acordada pelo frio, e soube que estava chegando em Ouro Preto.
A mem�ria � maior.

Fernanda, de 12 anos, me perguntou se a Torre Eiffel era grande. "Menor que a pedra de Ouro Verde."

(Em minha inf�ncia meus av�s moravam em Ouro Verde. Meu av� tinha uma fazenda de caf� que era cheia de 'or�pa', abelhas selvagens com nome de outro continente, nunca entendi isso. Tinha tamb�m tamandu�, marias-pretas e sofreus. Tucano tinha um no quintal da casa na cidade. Na pracinha na frente morava uma fam�lia de bichos-pregui�a. Eu engolia piabinhas vivas, Tin� dizia que s� assim ia aprender a nadar.

Um velho contava hist�rias de fantasmas na frente da fogueira no m�s de julho. Eu tinha medo dele.

Roubava laranjas-bahia na casa de Tim, de um �nico p�. Inda agora minha boca enche d'�gua, nunca mais comi laranjas-bahia iguais. Soube que o p� foi cortado.

Julinho P�-de-pato andava de terno, mas s� tomava banho nas f�rias, de mangueira, dado por meu tio Juninho, que tamb�m lhe tirava os bichos do p�, com uma agulha e v�rios impromp�rios. Julinho sentado no banco do jardim. Juninho sentado num banquinho baixo, de jacarand�.

Julinho P�-de-pato me chamava de princesa.

Eu tinha um p� de jabuticaba, respons�vel por umas tantas broncas pelas manchas nas roupas de pleb�ia.

Meu av� me dizia que a pedra alta, que podia ser vista da pra�a, e ficava atr�s da casa, tinha sido vendida pros japoneses. Pra fazer pedra de isqueiro.)
Das janelas

Meu av� me perguntou se eu n�o me cansei de viajar. Fiquei olhando pra ele e seus olhinhos me contaram de estradas, de pastos. Umas fazendas com vacas brancas, outras com vacas misturadas. Pedras grandes, com abacaxizinhos pela superf�cie. Depois me falaram de lama, de atoleiros. De riozinhos passando, como quem n�o quer nada, atravessando a estrada. Cheiros de mato suado, de estrume.

Perguntei se ele j� tinha se cansado de ver, de olhar pela janela, pelas janelas. Ele sorriu.
Ottolara. Presente de Natal. Da Mari
De volta pra casa

Acendi as flores, coloquei as velas no vaso. As ta�as eu joguei no lixo.

Elegantemente bebi no gargalo.