16.9.02

DA FRANCA VOLTEI

Meu visto na Inglaterra expiraria 4 dias antes da minha passagem de saida. Teria queir ao Home Office, um daqueles escritorios onde funcionarios com autoridade emprestada pelo cargo, mesmo que o cargo seja de porteiro do predio, nao sorriem e dizem 'Ronaldo, football, carnival!' (sim, porque na Inglaterra futebol eh football mesmo. Soccer eh invencao de americano), quando a gente diz que eh brasileiro. A primeira emenda aqui nao funciona: voce eh imigrante antes que prove o contrario.

O tal do Home Office fica em Croydon, suburbio distante 2h e sem charme nenhum. Diante da minha necessidade de ir lah minha tia, mais low profile impossivel me disse: 'nao se aborreca, va pra Franca'. E assim fui pra Franca no caminho mais longo que ja fiz em busca de um carimbo. Melhor ver o mar e terminar vendo a cara do oficial da imigracao que ver o oficial da imigracao de cara e sem compensacao, depois de ter esperado, dizem, umas 5 horas na fila.

A travessia do Canal da Mancha de barco nunca eh muito tranquila. Eu me senti dentro de uma maquina de lavar de tanto que aquilo balancava. Nao dava pra ficar nem em pe, todo mundo segurando no braco da cadeira, e meu estomago rodando mais que catavento em vendaval. Calais, ja em terras de merci beaucoup cabe em qualquer descricao oficial de suburbio industrial. Feia, cinza e triste. Nossa unica diversao foi comer croissants. 20 pra tres. E a moca da padaria deve ter achado que a gente nunca tinha comido aquilo na vida. Quente e bom daquele jeito, nunca mesmo.

Depois de tres horas procurando o que fazer em Calais, com um episodio do meus amigos indo molhar o pe na praia e eu esperando por eles me protejendo do vento na cabine telefonica com vista pro mar, voltamos pras terras da rainha.

(O oficial da imigracao me perguntou como eu tinha recebido aquele visto de 3 meses se a oficial de Gatwick sabia que eu ficaria mais tempo. 'Eu tambem acho que ela era uma idiota'., respondi. Ele riu e me deu o carimbinho.)

Na minha infancia a Franca era feita de castelos e vilas e queijos e croissants. Era onde Proust se apaixonava, onde D.J via mulheres azuis. Nenhuma Paris e mais bonita que a Paris dos meus sonhos. Aprendi rapidinho. Mas a parte dos croissants ainda eh verdade.

Novamente em casa, conversar com a fam�lia. (...) Enquanto estes s�o postos em sossego, abrir um livro. Sentir que a noite desceu e as luzes distantes melancolizam. Se a solid�o assaltar-nos, subjug�-la; se o sentimento de inseguran�a chegar, usar o telefone; se for a saudade, abrig�-la com reservas; se for a poesia, possui-la; se for o corvo arranhando o caixilho da janela, gritar-lhe alto e bom som: never more.

Noite pesada. � luz da l�mpada, viajamos. O livro precisa dizer-nos que o mundo est� errado, que o mundo devia, mas n�o � composto de domingos. Ent�o, como uma espada, surgir da nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada, de lado a lado. Para que os dias da semana entrante n�o nos repartam em uma exist�ncia de ego�smos.