'Depois que morre, cabou-se'
Edilson Avelino dos Santos - Pai de Jonathan dos Santos Alves, que se perdeu na Amazônia; Na batida do 'Jonatas', ele empreendeu uma busca épica pelo filho no interior da Amazônia
Eu disse pra ele: "Cuidado rapaz... cê não vai caçar lá não, que pra depois do Rio Branquinho é mata fechada cheia de igarapé, cheia de pântano. Tem muita onça, muita sucuriju, a cobra grande que é muita cobra. A floresta, ali naqueles ponto e pra todo adiante, é uma floresta alta, cheia de ladeirão e barranco". Mas o Jonatas foi. Ele e mais quatro. Pessoal ingrato, mau companheiro. Porque os quatro voltaram, mas ele não. O Jonatas tava vestido numa calça jeans, tênis, uma camisa do Exército, um chapéu. Levou uma espingarda, 14 cartucho, um canivete e um isqueiro. Na beirada do rio, fiquemo nós no aguardo: atiremo pra cima, provoquemo barulho. Então eu ouvi um tiro: era pra muito longe e aquilo me agoniou. A primeira noite, o Jonatas passou lá pra dentro do mato. Nós no aguardo. Durante 20 dias, o corpo de bombeiro fez busca na floresta. Num arrumaram nada. Eles entravam num dia e voltavam no outro. Sempre a pé. Depois desistiram. Eu não: eu tinha feito a minha equipe. Eu, meu outro filho e dois filho de índio aqui do Amazonas - o Ricardo e o Roberto. Nós fumo e andemo. Oito, dez dia seguido nós dormia na mata. Montava acampamento nas encosta, misturava a conserva no arroz, comia, depois ia dormir na rede. Acordava 5 hora da manhã, tomava Nescafé e saía andando de novo. Nós ia sempre na batida do Jonatas: cada vez que ele tomava outro rumo, quebrava uns galhinho e ia deixando no chão umas seta. O Jonatas sabia que a gente ia atrás dele. Primeiro ele se aprofundou. Depois tentou voltar. Deu pra ver pelas seta: ele andava 1 km, quebrava, andava outro, quebrava de novo, lá mais pra frente invertia outra vez. Eu orava de joelho dentro do mato: "O Senhor fechou a boca dos leão sobre Daniel. Senhor, fecha a boca da onça sobre o meu filho. Fecha a boca da cobra, meu Senhor".
(Edilson Avelino dos Santos, 41 anos, é o pai do Jonathan. É testemunha de Jeová. Não sabe ler nem escrever: apenas assina o próprio nome, repetindo o desenho das letras. Ele só chama o Jonathan de Jonatas. Não é apelido - é o jeito que o Edilson tem de falar. Jonathan tinha 18 anos. Era o seu filho mais velho. O Gérson tem 17. A Jéssica, 15. Ela tem síndrome de Down. O Edilson sempre passou por muitas dificuldades: ele mora em um sítio às margens de uma estrada de terra que corta a BR-174, ligação entre Manaus e Boa Vista, e vive exclusivamente daquilo que planta. Está 107 km ao norte de Manaus, no município de Presidente Figueiredo. Na sua casa não tem televisão - tem uma moto, que é para o Edilson se deslocar até a cidade. Ele vive com a mulher. Mas quem criou o Jonathan foi a sua irmã que mora em Manaus, a Iraci. Tanto que o sobrenome do Jonathan, registrado quando ele tinha 5 meses, é o sobrenome dela da época de casada - J. dos Santos Alves. (...))
No meio da mata, depois de muito ir e voltar, o Jonatas começou a subir pela lateral do Rio Branquinho. Ele na frente e nós atrás, na batida das pegada. Depois de oito dias nesse encalço, a farinha começou a acabar. Fomo obrigado a sair da mata fechada, jogamo o sol nos ombro e tomamo uma vicinal. Em Presidente Figueiredo, pedimo ajuda pra guarda municipal: eles iam entrar lá pela cabeceira onde nasce o rio e descer fazendo a varredura, ao tempo que nós fechava por baixo. Eles toparo e nós fomo - e nada. Nessa situação de pensamento, eu concluí que não tinha outro jeito: o Jonatas tá dentro da Mutembol, que é uma fazenda aqui da região. Então eu cheguei pro Gerson, pro Ricardo e pro Roberto: "Olha, é a última busca que eu vou fazer, porque eu não agüento mais andar no mato. Eu quando era novo tinha muita resistência. Sou mateiro profissional. Mas agora eu tenho 41 e não agüento mais. Eu quero saber se ocês tão comigo". Os índio então responderam: "Tamo contigo até morrer, até onde cê quiser". Nós arrumemo tudo nas costa: lona, goiabada, suco, leite, arroz de saquinho, espingarda, cantil, lamparina, lampião, dois litro de óleo diesel, o meu terçado de bainha. Comprei tudo em Figueiredo - tudo pendurado na conta do mercadinho.
Na sexta-feira retrasada, nós entremo de novo atrás dele. Subimo um pedação do rio, andemo um dia inteiro até o ponto que ele tinha que ter quebrado na Mutembol. Nós num sabia, mas o Jonatas tava a menos de 4km da gente. Quando começou a chegar o final da tarde, por essa passagem da 5 hora, encontremo um trecho de mato muito alto. Ia ter que cortar. O dia tava começando a escurecer e nós ficamo indeciso se não era melhor pernoitar por ali e retomar o trabalho no dia seguinte. Foi isso que nós fizemo, e eu me arrependo muito. Naquela madrugada caiu uma chuva muito forte, o tempo ficou frio, o barulhão da água e do vento na copa das árvore - o Jonatas pegou essa chuva todinha, né, tava ali do lado. No sábado de manhã nós abrimo a picada. Andemo. Era 9h30 pras 10 quando o índio mateiro avistou: "Olha ali onde é que tá lá o menino!" Jonatas tava sentado na beira de um igarapé. Tava deitado assim meio encostado num toco. Gritei e corri: "Meu filho, pelo amor de Deus!!!" Encontrei ele magro, magro, magro igual menino da Etiópia. Não tinha mais coxa, as costela dele todinha nas costa. Tava com a gandola aberta e só de cueca - todo evacuado. Peguei a cabeça dele no colo, ele todo mole: "Meu filho, meu filho!!!" Olhei e ele não tinha mais rosto - o rosto secou e o que ele tinha mais era olho. Um olho aboticado, regalado na cara. Ele olhou pra mim e fez que ia lagrimar. Depois soltou um gemido: "Uhhh..." Então fechou os dente e começou a endurecer. "Gerson, meu filho, acode seu irmão, traz o suco, tira o soro, rasga, bota na água, tira o cantil!!!" Aquela agonia. Depois, as juntinha dele começou a amolecer, as juntinha da mão, tudo. Eu dei compressa em cima do coração dele, pra baixo, apertando, apertando. Mas quando eu fui fazer boca a boca, ele prendeu inda mais os dente, trancando bem duro. Então eu comecei a gritar. A gente tava a 30km da estrada. Eu queria uma asa pra me tirar dali.
(O Jonathan era um menino que queria ser forte. Na verdade, queria ser como um primo dele, que é modelo fotográfico. Por isso o Jonathan queria fazer uma academia. Não sendo possível nada disso, era um bom jogador de futebol - queria fazer a escolinha do Flamengo. Não apenas por essa razão, foi um estudante que não chegou lá. Parou no terceiro ano do ensino fundamental. Não sabia ler nem escrever direito. Foi prejudicado por um defeito na audição, apenas parcialmente resolvido quando a Iraci retirou do seu ouvido uma grande quantidade de cera. Ainda assim, o Jonathan gostava de escutar música. Nos últimos tempos, somente hip hop. Vestia-se como um rapper: as calças bem largas, a munhequeira, umas correntes no pescoço. Era hábil na street dance. Podia virar artista. Mas no caso do Jonathan, era bobagem ficar sonhando com essas coisas. Então ele se alistou no Exército. Era para ter se apresentado no dia 1º de junho. Mas na ocasião fazia 20 dias que ele estava sumido na mata - e nesse dia os bombeiros suspenderam as buscas.)
No sábado de manhã, o sábado 28, o Jonatas trancou os dente e morreu no meu colo. Antes, quando ele tava deitado sem força, a varejeira tinha botado uns tapuru na boca dele, entre os dente e o beiço. Nós retiremo os inseto. Eu limpei o corpo com repelente e óleo diesel, que era pra remover o resto de bicho - o cabelo tava cheio de ova, a pele cheia de carrapato. Vesti nele umas roupa que a Iraci tinha mandado, para o caso mesmo da gente localizar o menino. Eu abri uma rede, coloquei o corpo dele lá dentro, costurei, trespassei uma vara comprida pra poder carregar. Fui sozinho na frente procurar ajuda. Botei pra andar. Os outros três veio atrás, carregando o Jonatas. Onde eu passava, dava chute nim pau com meu coturno. Sentia muito remorso-desgosto, muita ira de raiva. Porque se fosse filho de rico, tava tudo aí rodando, os helicóptero, o pessoal tudo atrás. Aqui perdeu um velho outro dia, veio até cão farejador, exército, avião. Mas o velho tava em Manaus, mentindo pra mulher. O meu filho não: o meu filho precisava de verdade. Por isso eu gritava e reclamava de Deus: "Por que me abandonaste, Senhor? Por que abandonaste meu filho?" Quando escureceu, dormi sozinho no mato: sem fogo nem luz, eu armei uma rede bem alta, aproveitando o tronco de duas árvore. Quando eu entrei na rede, o breu da floresta já tava bem escuro - o breu da Floresta Amazônica. Passei a noite todinha chorando: um vazio danado, um buraco bem grande dentro de mim.
De manhã cedo eu continuei. Saí na estrada às 9 da manhã de domingo. Quando voltei com os pessoal pra ajudar no resgate, encontrei o Gérson e os dois índio saindo da mata. "Cadê o Jonatas, meu filho?" O Gérson: "Ninguém agüentou mais carregar, meu pai, tava fedendo e inchando, ninguém agüentou. Então nós enrolemo a lona na rede dele e amarremo lá em cima numa árvore, longe dos bicho, que era pra depois resgatar". O resgate aconteceu só na segunda-feira. Os bombeiro arrumaram um helicóptero. O Jonatas veio amarrado do lado de fora, pendurado numa corda. Depois velemo e enterremo.
(A Iraci está muito inconformada. Diz que se tivesse algum dinheiro, R$ 3 mil ou R$ 4 mil no banco, teria pago uma hora de helicóptero para sobrevoar a selva durante as buscas. Infelizmente, "o meu débito estava negativo". Já o Edilson, ele quer sair do sítio. Vai morar em Presidente Figueiredo, que não tem esse nome por causa do general, mas em homenagem ao primeiro presidente da província do Amazonas, João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha (1798-1861). O Edilson está devendo um dinheiro no mercadinho da cidade. Nesses 50 dias de procura pelo filho, emagreceu 30kg.)
Uma lição dessa história? O senhor põe isso aí: o pai, quando tiver seu filho, tem que fazer por ele enquanto ele tá vivo. Depois que morre, cabou-se.
***
Por falta do que dizer de próprio, publico aqui uma matéria do jornalista Fred de Melo Paiva.