26.4.03

esquecer, lembrar

escrever um diário me torna testemunha da minha própria história. não escrevo tudo: filtro. mas o filtro é peneira de palha de batear feijão. e isso.

ou aquilo quando vida vem fantasiada de outra vida. mas é mesmo minha.

as maiores lonjuras de minha vida ficam aqui, canastrinha. aí, entre portos, abro o baú e finjo que o choro é alergia.

arquivo I

Costurou bandeiras na mochila. Cortava a linha com os dentes. Fazia novo noh, com o polegar e o indicador deslizando um sobre o outro, enquanto pensava na avoh com carinho e saudade. Os olhinhos apertados que ela tinha, o cheiro de Lavanda Pop. Olhou a costura e deixou escapar um sorriso, a avoh nao aprovaria. Nada parecido com seus bordados. Mas era parecido com infancia, vestidos de boneca feitos antes da descoberta do avesso, festas juninas e retalhos costurados na calcas jeans.

(Trancas. Flores vermelhas feitas de tecido na ponta das trancas. A sapatilha de lantejoulas coloridas que o avo trouxe de viagem pra longe. Uma foto em que teve que sorrir, mas que ficou mesmo parecendo uma careta, mais condizente com a tristeza de dentro. Naquele tempo jah sentia odio mas ainda nao sabia o que era isso.)

O avo. Pensou no presente que queria dar de Natal. Um livro que contasse do mundo. De um jeito diferente daquele de Monteiro Lobato.

(Historia do Mundo para Criancas, Nosso Amiguinho, pirulitos em forma de bico... O avo era feito de infancia. Uma fada fez com que sentisse cheiro do dia em que aprendeu a andar de bicicleta. Olhou pra traz e viu a mao do avo na garupa.)

Deu o ultimo noh. Ficou bonito. Lembrou da epoca em que descobriu o bonito.

(A cor do doce de banana, de um vinho brilhante. O sorriso de Maria, que nao era feito de boca, mas de felicidade. Um certo livro de capa vermelha. Uma garrafa de vinho guardada ate virar vinagre, com uma embalagem de desenhos azuis. As montanhas de pedras grandes, atras da casa. O vestido branco de florzinhas pequeninas, coloridas, dado pela tia. Lembrou que a avoh ainda o guarda. O mundo se dividia entre os que a protegiam; e a Magoa. Muitos eram os que a protegiam. Fez uma oracao em forma de suspiro, sorriu um sorriso triste.)

Abriu a cortina, soprou os pensamentos pra fora da janela.
Apagou as luzes, ajeitou o travesseiro. Era baixo, precisou dobra-lo.

Tentou dormir. Nao conseguiu.

arquivo II

Eu, que sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sossego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos de outras terras, queria mesmo neste instante era voltar.

Em minhas andancas eu quase nunca soube se estava fugindo de uma coisa ou cacando outra. Nessa brincadeira passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida. E as vezes reparamos que eh ela que se vai, e nos (as vezes) estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando.

Ha, e nao vale a pena esconder nem esquecer isso, aqueles momentos de solidao e de morno desespero, aquela surda saudade que nao e de terra nem de gente, e eh de tudo, eh de um ar em que se fica mais distraida, eh de um cheiro antigo de chuva na terra da infancia, eh de qualquer coisa esquecida e humilde - moleque passando na bicicleta assobiando samba, goiabeira, peteca, conversa mole, quebra-queixo. Mas entao as bobagens do estrangeiro nao rimam com a gente, e as ruas sao hostis e as casas se fecham com egoismo, e a alegria dos outros que passam rindo e falando alto sua lingua doi como bofetada injusta.