25.2.03

IDÉIA FIXA

Sua alma era um tanto destrambelhada quando ele se trancou dentro de um quartinho de pensão em BH e começou a comer a velha e furada sabedoria grega. Seu primeiro filósofo foi Lucretio, de quem carregou a vida inteira uma dor terrível, um dor que nunca será esquecida por mim.

Eu convivi plenamente com este cara, ele morava no quarto ao lado do meu. Nessa época tinha fugido de um hospício no norte de Minas natal e procurava um emprego na cidade que tinha, isso há muito tempo, um belo horizonte.

Trabalhar pra mim era uma de uma necessidade enorme. Nunca gostei de trabalho. Confesso. E acho que nunca vou gostar. Fui reprovado 3 vezes no vestibular e não tenho nenhuma profissão, dessas que se filia a sindicatos. Trabalho é quase sempre uma coisa cansativa, uma coisa de ônibus, com cheiro de mofo, de gente suja, de dor na perna.

Ele também tinha sido algumas vezes reprovado no vestibular. Certa vez tentou Letras na Universidade Federal de Ouro Preto, queria ser poeta e tinha certeza que o mundo letrado seria capaz de dar tudo que fosse necessário para a construção de poesia, não passou. Esperou mais um semestre e tentou História. Zerou redação por que colocou a palavra boceta no cantinho da folha. Não que ele fosse um devasso, ou desses que usam a palavra boceta com sentido filosófico ou político. Estava mesmo pensando em uma boceta loira que estava sentada ao seu lado na hora da prova. Quando ele fala pra alguém dessa boceta nota-se que seus olhos se enchem de uma coisa que não poderia nunca ser considerada lágrima. Uma coisa de brilho nojento, uma coisa que parece o pus no pé de um mendigo faminto. Para ficar mais claro, seus olhos ficam culposos, sombrios, não sei, nunca fui bom de palavras, mas sei que acontece alguma coisa e que a culpada é essa boceta que ele viu uma vez e que foi para ele a única mulher que ele conheceu em toda sua vida.

Outro aspecto interessante desse idiota é que ele é casto, virgem, nunca dormiu com uma mulher, não sabe o cheiro de uma boceta real.

Da outra vez tentou Matemática. Neste ele passou. Também, depois de 4 anos tentando vestibulares e vestibulares... Lavras. Acho que o fato dele ter sido expulso do curso é importante pra todos nós, inclusive pra mim, um fato que pode acontecer com qualquer indivíduo pode ser importante pra qualquer ser, seja ele uma pedra, um cachorro ou homem letrado com cara de Cu.

Disse-me que fazia sol quando ele fugiu de Lavras e perambulou sete dias naquela região. Quando voltou já não era aluno da Universidade, sua expulsão já tinha sido concretizada, seus colegas de quarto haviam desaparecido com suas coisas. Na Universidade o boato que rolava é que aquele aluno verde do curso de Matemática tinha ficado louco, saído correndo da aula Cálculo I e cuspido na cara do reitor, depois de colocar a genital pra fora na frente de uma faxineira.

É, ele fez tudo isso: mostrou seu pênis praquela mulher que talvez já não via um pênis há algum tempo e cuspiu na cara do reitor que como todo reitor realmente merecia uma cusparada. A causa de tudo isso? A boceta que o fez ser reprovado no vestibular de Letras. A tal boceta que o atormentava noites e dias no tempo em que ele vivia comigo em BH. A tal boceta, a loira boceta que estava perdida em todos os cantos de sua mente, a tal.

Um vez, quando estava voltando do centro de BH para almoçar, o encontrei olhando para uma foto amarelada e virada nas beiradas. Era a foto da sala onde ele prestou vestibular. Junto dessa havia outras de paisagens de Ouro Preto. Dessas que todo mundo já viu de monte. Ouro Preto era um lugar onde ele não fez nenhum amigo e nem conseguiu se embebedar o quanto esperava. Representava todos os sonhos não realizados, pensei naquele dia. O futuro que ficou no passado e nunca se concretizou, a boceta que ele espera engolir e não conseguiu. O amor que ele queria ter e acabou sem. Ouro Preto foi mesmo uma desgraça na vida desse cara e mesmo assim ele sonhava com o dia em que ele voltaria e reencontrasse sua boceta.

Um homem pode se tornar uma criatura imprestável em conseqüência de seus fracassos. Eu mesmo me tornei um infeliz depois de ter visto meu sonho de ser pintor ir por água abaixo. Fiquei alguns anos louco pintando quadros das imagens que rodeavam minha mente. Pintei minha alma de carne em aquarelas tristes. E andei pelas ruas de minha província itabirana sem lembrar que Carlos Drummond de Andrade também esteve ali.

Quero dar uma pausa neste caso para uma breve reflexão sobre o que eu estou escrevendo. Chorei anos pela perda de uma mulher e morri aos 20 anos quando percebi que de pintor eu só tinha o vício. Descobrir que não tinha talento pra pintura me fez pensar que eu não tinha talento pra nada, que estava condenado a ser um pai de família, desses que vivem uma vida chata e responsável, que cuidam da esposa e dos filhos com uma responsabilidade doentia. Que provoca nos filhotes uma doente e venerável estagnação. Nunca fui escritor, nunca quis ser escritor, estou escrevendo isso por que hoje fui mandando embora do emprego e me matei na privada do meu banheiro. Saibam que eu estou morto e que não pretendo de forma alguma imitar Brás Cubas em suas memórias. Minha intenção é apenas falar de como o idiota personagem dessa história fez com que eu perdesse o emprego e me matasse.

Ele era o espelho dos meus fracassos. Como todo fracassado só servia pra isso, pra fazer os outros perceberem o quanto são inúteis e o quanto a vida é uma merda e tem um gosto delicioso.

E Ouro Preto é um lugar onde nunca fui e onde nunca pensei ir, mas que ficou ligado a mim desde o dia em que o conheci, esse pavão da vida moderna, esse dado jogado pra cima. Ele que vivia suas noites sonhando com Ouro Preto e sua boceta desconhecida. Esse que se trancou no quarto e amou S�crates como uma bicha ama um garotinho lindo de 15 anos.

Este que me olha em minha imensa privada privada.

Antes de continuar falando do passado, quero falar do que está acontecendo agora, falar que este idiota levantou meu corpo do banheiro, não estamos na pensão de BH, estamos em Caratinga, cidadezinha fodida do interior de Minas. Estamos na casa de um amigo meu que depois de dois anos convivendo conosco ficou louco e desaguou no passado. Um dia falarei dele. Talvez no final desse relato. Mas agora meu corpo esta sendo arrastado do banheiro até o jardim. O jardim fica de frente pra rua e esse louco vem em minha direção com uma pá. Ele começou a fazer um buraco na grama. O buraco já está grande e meu corpo está sendo enterrado ali. Você sabe como é se sentir enterrado? Como é receber terra em cima da cabeça? Eu também não sei porque estou morto, e quando se morre as coisas não acontecem mais, parecem sonhadas. Não adianta se lembrar que existe um livro de filosofia que fala que é bom esquecer aquilo que passou. Não funciona. Não consola. Não esclarece. Não ajuda.

E ele, agora sem mim, lá minha carta de suicídio, minha linda carta de suicídio que está manchada de margarina que eu comi com o pão de forma com gosto de geladeira, não posso mais vê-lo, sua imagem presente e futura não existe mais. Pra mim ele só existe de duas formas: como aquilo que foi e como aquilo que sonhei. Tento fechar os olhos debaixo desse chão. Não bem meus olhos, acho que tento fechar minha percepção. Fecho mas algo fica tristemente aberto.