O tempo, em seu trabalho intestino
comete os vestígios de Deus.
Héber Sales
comete os vestígios de Deus.
Héber Sales
Era ainda a fase hieróglifa da linguagem. Mirante era o colo de Maria. Mais das vezes via tudo era de embaixo, altura de seus quadris. Viver era um ludo.
Lembro o cheiro amarelo forte: o apuro da árvore era a fruta. Serigüela tem muito bicho, dizia minha avó. E eu pensava nas vidinhas emboladas ramerrando naqueles orbes. O quintal era o universo. Galáxias de limões, pitangas, jabuticabas. O todo meu.
Eu bem achava que quem mandava florescer era eu. Quem pedia mais de um isso, mais de um aquilo, era eu. Verdade é que sempre dava muito e Maria ralhava. "É seu poder não, menina, vem de Deus." E eu perguntava quem era Deus. E ela maravilhava os olhos, mas falava coisas que eu não entendia, ilustrava com palavras o que eu não conhecia. Na metade eu não ouvia, ficava olhando a cara dela brilhar, mais um orbe.
O tempo, esse senhor saturno, não tem dois caminhos, ele corre só pra frente. E vó mudou de estrada pra mais longe, na Bahia. Eu peguei estrada pro mais aqui, nos distantes. (Eu peguei estrada tantas vezes antes de aqui, tantos escambos de certo por duvidoso. Anjo me disse: "vai, ser forasteira na vida". E eu vim.)
Vezes no tempo, o oco da solidão força a gente pro chão: as raízes. Em conversas com Anaké - que disse que eu fosse, que me esperava - resolvi ir ter com a minha avó. E D. Ivany me deu um presente de tempo - porque um bordado não é um bordado, é o tempo. E disse assim, vem comigo. E eu a segui.
Passamos pela sala da entrada, passamos pelo portão de saída, ganhamos a rua de pedra e poeira branca, e ela tirou uma chavezinha da mão, como um melquíades tira flor do bolso, o sorriso colorindo, olho de vó fecha quando se ri. Abriu o portão preto, que rangeu choroso, e disse: É sua, a árvore. Serigüelas.
E foi como o princípio. As orbes maduras, o vento rodopiando o cheiro. E maravilhei meus olhos, lembrados de Maria. E compreendi seus desenhos de verbo. Pela primeira vez eu compreendi.
E pensei em Deus e seus brinquedos. E pensei no tempo, que no seu caminhar deixa gavetas que só se abrem com a chave da lembrança. E pensei que Um é o outro.
O senhor veja, minha avó comprou uma casa pra me dar uma árvore. E decifro que me devolveu foi a meninice, à meninice. E me ofereceu - assim como quem dá um doce besta, uma mariola - uma sabedoria: o entendimento de que nas gavetas do tempo é preciso guardar o feliz dos gostos.
E eu disse: amém.